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A espectadora

            Carregava no corpo o cansaço que se acumulou durante seus setenta e cinco anos. Anos estes nada fáceis: sofreu passivamente com os insultos das raparigas, dos bafos incontáveis de cachaça e com os partos complicados. O corpo, acomodado, não recepcionava as novas tecnologias como muitos da sua idade. Feito uma gata, esparramava-se no sofá, cochilava; depois vai para a cama, fica por lá algum tempo e senta-se numa confortável cadeira. De lá ocupavam os dedos com as bolinhas do terço, mas os olhos estavam voltados para os movimentos da rua. A reza acabou. Os olhos deixaram à rua e os filhos apareceram em sua mente; um por um. Eles eram a sua mais séria preocupação.  Intrigas, fofocas, ciúmes, calúnias. Mesmo assim conviviam indiferentes e hipócritas. Esses fatos a entristeciam a ponto de suplicar no silêncio a morte. Uma lágrima envelhecida umedecia os sulcos da face. Ela pensava: Eu os pari. Cuidei deles com amor, carinho. Fiz de tudo para eles estudarem, arranjar em

Para você

O amor tem uma regra única para aqueles querem vivenciá-lo: O eu do amor não ocupa o espaço de outro eu. Eles se partilham, tornando-se uma só cabeça; Deixando o âmago adornado.

Utopia a covardia

Outro dia conversava tranquilamente com algumas pessoas sobre o atual modo de se fazer política, como o sistema é perverso e como as pessoas estão vulneráveis a ele. Neste colóquio, expus que a mudança na escolha dos empregados eletivos só seria possível se os eleitores começassem a vê-los como tais e não como investidores, comerciantes. Para isso acontecer era necessário que o combate ao comércio eleitoral não ficasse retido nas crônicas, muitas vezes a serviço de proveito próprio, nem no período eleitoral. Esse combate deveria ser todos os dias. Mas a minha exposição sofreu resistência por parte delas. Notei que elas estavam acostumadas a situação e davam a impressão de não querer mudanças. Isso era evidente quando diziam: “A política é assim mesmo. O que é que a pode fazer? Não tem jeito não. O povo só vota em quem dar alguma coisa”. Fiz de conta que não as ouvi e insisti que a mudança era possível se houvesse empenho de cada um dos que discordam dessa prática, organizando-se, aprof

A besta

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A vida nada mais é do que uma coisa bestializada, onde tudo se resume em cansaço e vaidade. Tudo que buscamos, tudo o que adquirimos se resume na velhice e na dor. Quantas e quantas são as pessoas que possuem vários bens, poder, luxo diverso, se vangloriam disso e em suas casas não há almas para habitar. O que existem são almas escuras pela dor e pelo sofrimento. Tudo o que a gente constrói é simplesmente para nos livrar do tédio da existência. Há momentos que paro e noto a coisa besta diante de mim, diante das minhas retinas fatigadas: a besta humana, estúpida, inacabada. A besta que acha que é inteligente, que cria a fome, a bomba, às injustiças, a violência, as desigualdades sociais, os transtornos diversos da vida. Toda essa bestialização se intensifica a cada dia, a cada instante na busca feroz pelo poder, na busca desenfreada pelo dinheiro; originando todo tipo de sentimento ruim: o egoísmo, a maldade, a intolerância, a incompreensão... Mesmo diante de tantos e

O vilão

Estou cursando uma pós-graduação. Nos encontros, debatemos assuntos voltados para a área de educação e, nesses debates, incluímos a política. Neste ponto, as opiniões discorridas me faz pensar no fazer político deste país.  A visão política neste âmbito é deturpada porque o sistema político e a maneira de se fazer política são vistas de cima para baixo, reforçando a ideia de que a Política é a grande vilã da sociedade.  Usam-se muito as expressões “dinheiro nas cuecas, nas meias; todos calçam 40”,e assim por diante. E elas vêm carregadas de revolta, sempre seguida de uma opinião midiática, catada da tv, dos jornais e revista on-line ou impressos.  Raramente se fala na compra e venda de votos que acontece em todas as esferas do sistema. Preferem a acidez da crítica. O comércio eleitoral não é analisado nas células do Estado, mas na esfera midiática. Isso não é bom.  De nada adianta os alaridos das esquinas, dos assentos, das lágrimas.  De nada servem as trombetas da mídia quando se faz

O problema do amor

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O problema do amor é que as pessoas o fantasiam. O problema do amor é que as pessoas criam imagens e perspectivas do objeto amado. Elas nunca se preparam para a dor. Nunca se preparam para a decepção, como se o amor fosse um estado de graça permanente. O problema do amor é que as pessoas o idealizaram e esqueceram que ele é concreto. E por ser concreto é incompreendido. O problema do amor é que ele é dual. Digo, não é único; torna-se único É de carne e osso. Não é só carne, só osso. São duas carnes, dois ossos. Esse é problema do amor. LIMA , Ronaldo Pereira de. Agonia Urbana. Rio de Janeiro: Litteris Ed: Quártica, 2009.

O troco

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Esquentou, durante toda a manhã, a cabeça por causa da miserável burocracia pública; aborrecendo-se principalmente com as infelizes informações desencontradas que o punha em um estado de nervos paranóico. Após toda essa coisa medíocre, seguiu para uma agência bancária. Nela, esperou na fila com o estômago doendo, a alma e os pés. Somente uma daquelas figuras envelhecida, ouvindo em um celular e cantando aquelas músicas de camelôs piratas o fez rir. Ao chegar sua vez de ser atendido, a bancária nem olhou em sua face. Pediu-lhe o boleto, pôs na máquina para fazer a leitura do código de barras, disse-lhe o valor (que ele já sabia) e o esperou pagar. Com o dinheiro em mãos, calou-se, deu a ele o comprovante de pagamento e chamou o próximo cliente. Sem sair da fila, disse: — Moça, o troco! — Só são R$ 0,20. — Moça, meu troco. Já paguei impostos demais nessa repartição e nem água tem para beber. Quero o meu troco! — Mas eu não tenho aqui! — Mas eu quero o meu