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Farinha com água

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Meio-dia. O mormaço entra pela porta escancarada, ficando retido nos cantos da casa. Olhos pequenos e pretos brilham de tristeza, desfalecidos. A mãe os olha com um nó na alma, impaciente. O marido vai para a saleta. Os filhos sentados em uma mesa que fora do vizinho, com quatro cadeiras descadeiradas; esperam silenciosamente pela mãe. O silêncio negro da fome põe no rosto as formas geométricas da tristeza, do desalento. Ela se afasta. Pega um bule, água na torneira, botijão prestes a acabar e leva-o ao fogo. À água ferve, borbulha. Ela tirou o bule do fogo e saiu colocando em cada prato (Nem tempero havia). O vapor subia prendendo aquela família no mormaço da dor, do desespero. Em seguida ela, a mãe, pegou o resto de farinha azeda e dividiu em partes iguais. Uma xícara para cada filho. Os meninos mexiam a colher, tristonhos sem querer comerem. Mas uma força maior estava dentro deles, forte, robusta: A FOME. Depois ela se ajuntou ao marido e a FOME.

O segredo escondido na prateleira

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— Por favor, vá até a prateleira e me traga alguns fragmentos. Se por acaso você não os encontrar, procurai-os nos cantos da casa. E não demore. Obrigado!   No fundo escuro da prateleira uma criança chorava e ninguém ouvia seu pranto. — Por que você está chorando? — Porque estou com fome. Ninguém saciou minha fome. Também chorei com ela porque estava com fome. E nós chorávamos e ninguém nos ouvia. Estávamos na parte mais escura da prateleira, onde costuma ficar a traça. Então peguei linha, agulha e o cesto. Peguei algumas páginas e fiz pão, convidei-o para sentarmos em cadeiras de folhas. Começamos a comer, comer, comer...   Meus cadernos, 1998.

Posta de peixe

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Meio dia... Ele chegou faminto do trabalho. Foi a cozinha, abriu a porta e a brisa o recebeu abafada. Meio metro da porta havia um estreito banheiro. A sua direita uma lavanderia. Ao pé dela, um gato vindo não sabia de onde com uma posta de peixe. Aquele gato trouxera para o seu quintal um furto de uma cozinha, não sabendo de onde nem tendo idéia de onde.  Deu dois passos. O gato, ao perceber que se aproximava, ergueu os olhos semicerrados e ronronou para ele. Talvez, no pensa mento de gato, ele seria mais um felino faminto que disputava aquela posta.

A existência que dói

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Era visível no olho esquerdo uma remela esverdeada. A face, abatida, expunha a dor, a tristeza contida no peito. O lado direito perdera o movimento por causa de um derrame. Não costurava mais, não lavava a louça, nem punha na mesa o café para os filhos e para o esposo. Aquilo traspassava a sua alma e a reduzia a infelicidade. As lágrimas, companheiras de sempre, não mediam esforços para torná-la ridícula para os incompreensivos. E não eram só as lágrimas que entrou em sua vida, mas os antidepressivos, a impaciência e o murmúrio. Mas, em meio a essa "tempestade", sobrevivia com poucas e nobres lembranças que não voltam mais.

Abrir e fechar o dia

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Hoje fui acometido por uma insônia miserável. Volvia-se sobre o colchão e os meus olhos viam pontinhos luminosos na escuridão. Os grilos se foram, os pardais pipilavam e abriam o dia. Um montão deles era um coral. Eu não fiquei para trás, abri também o dia com as orelhas e da minha cama vi um dia diferente com nuvens espessas e paradas. Os primeiros raios de ressaca surgindo com uma preguiça própria do céu. Olhos começaram a se abrir, mãos começaram a lavar os rostos. Os primeiros movimentos saem na rua, algumas portas se acordam e para a rua. Os pardais se espalham em vôos diferentes e buscam na variedade do cardápio o dia. Saem assim como o homem para a vida. Mas, eu fico coberto com o lençol e os  meus olhos estão pesados. Um friozinho está nos cantos do meu quarto, menino sapeca, sorrateiro. LIMA, Ronaldo Pereira et all. Ritmo Vital: contos, poesias e crônicas. São Paulo, Edições AG, 2007.

A menina que passa

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Lá vai a menina que passa E os meus olhos que pregam uma peça em frente da praça Lá vai todo o encanto Que é livre quando canto ao meu amor E todos olham na praça Que eu, passo a passo, vou com pressa. Lá vão os meus pensamentos Todo mágico, todo humano Que foge e se abafa de tanto lamento Lá vai o meu sorriso com o vento Com cara de bento E uma angústia por dentro Lá vai, lá vai e as minhas lágrimas Não vão, e você menina, lá vai. Lá vou eu, Com a menina que passa, As mãos que passam e os pensamentos que montam uma peça No meio da praça. Não me peça menina que passa, a minha face E todos te olham e me olham. Mas entendam: ela é a menina que passa com muita pressa pela praça (LIMA, Ronaldo Pereira de et all. O lugar da poesia e da prosa: Antologia , pp. 22-23. Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2008).

Céu plúmbeo

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O céu estava plúmbeo. No outro lado do rio, uma nova croa apareceu; entristecendo os corações dos ribeirinhos. Uma canoa passou melancólica e solitária. Desci a rampa do porto das lanchas. Dentro de uma delas, olhei no visor do celular. Estava atrasada cinco minutos . Foi dado partida no motor . A lancha saiu de ré, auxiliada por um caibro roliço. Diante de mim, vestido à Caruaru, um jovem de uns vinte e cinco anos tentava nos esconder a face e os olhos sob a aba do boné branco. Era como se ele estivesse nos escondendo algo, receando que a gente desconfiasse ou descobrisse. A brisa suave e fria batia nossas faces e as águas, as poucas e cansadas águas do pobre Chico receberam as primeiras gotas do céu. O vento, malinando sobre a face das águas, formavam pequenas marés. A lancha se balançou e uma senhora, no fundo, estava aflita. Próximo a ponte, apesar da distância, notávamos a imensa ilha com currais que servem para pequenas criações de gado bovino. Ilha esta qu