24 de nov. de 2008

Farinha com água


Meio-dia. O mormaço entra pela porta escancarada, ficando retido nos cantos da casa. Olhos pequenos e pretos brilham de tristeza, desfalecidos. A mãe os olha com um nó na alma, impaciente. O marido vai para a saleta.

Os filhos sentados em uma mesa que fora do vizinho, com quatro cadeiras descadeiradas; esperam silenciosamente pela mãe. O silêncio negro da fome põe no rosto as formas geométricas da tristeza, do desalento.

Ela se afasta. Pega um bule, água na torneira, botijão prestes a acabar e leva-o ao fogo. À água ferve, borbulha. Ela tirou o bule do fogo e saiu colocando em cada prato (Nem tempero havia). O vapor subia prendendo aquela família no mormaço da dor, do desespero.

Em seguida ela, a mãe, pegou o resto de farinha azeda e dividiu em partes iguais. Uma xícara para cada filho. Os meninos mexiam a colher, tristonhos sem querer comerem. Mas uma força maior estava dentro deles, forte, robusta: A FOME.

Depois ela se ajuntou ao marido e a FOME.
Leia Mais ►

19 de set. de 2008

O segredo escondido na prateleira


— Por favor, vá até a prateleira e me traga alguns fragmentos. Se por acaso você não os encontrar, procurai-os nos cantos da casa. E não demore. Obrigado!
 
No fundo escuro da prateleira uma criança chorava e ninguém ouvia seu pranto.
— Por que você está chorando?


— Porque estou com fome. Ninguém saciou minha fome.

Também chorei com ela porque estava com fome. E nós chorávamos e ninguém nos ouvia. Estávamos na parte mais escura da prateleira, onde costuma ficar a traça.


Então peguei linha, agulha e o cesto. Peguei algumas páginas e fiz pão, convidei-o para sentarmos em cadeiras de folhas. Começamos a comer, comer, comer...

 
Meus cadernos, 1998.
Leia Mais ►

24 de ago. de 2008

Posta de peixe


Meio dia...

Ele chegou faminto do trabalho. Foi a cozinha, abriu a porta e a brisa o recebeu abafada. Meio metro da porta havia um estreito banheiro. A sua direita uma lavanderia. Ao pé dela, um gato vindo não sabia de onde com uma posta de peixe.

Aquele gato trouxera para o seu quintal um furto de uma cozinha, não sabendo de onde nem tendo idéia de onde. 

Deu dois passos. O gato, ao perceber que se aproximava, ergueu os olhos semicerrados e ronronou para ele. Talvez, no pensamento de gato, ele seria mais um felino faminto que disputava aquela posta.
Leia Mais ►

18 de ago. de 2008

A existência que dói




Era visível no olho esquerdo uma remela esverdeada. A face, abatida, expunha a dor, a tristeza contida no peito. O lado direito perdera o movimento por causa de um derrame. Não costurava mais, não lavava a louça, nem punha na mesa o café para os filhos e para o esposo. Aquilo traspassava a sua alma e a reduzia a infelicidade. As lágrimas, companheiras de sempre, não mediam esforços para torná-la ridícula para os incompreensivos. E não eram só as lágrimas que entrou em sua vida, mas os antidepressivos, a impaciência e o murmúrio. Mas, em meio a essa "tempestade", sobrevivia com poucas e nobres lembranças que não voltam mais.

Leia Mais ►

8 de ago. de 2008

Abrir e fechar o dia


Hoje fui acometido por uma insônia miserável. Volvia-se sobre o colchão e os meus olhos viam pontinhos luminosos na escuridão. Os grilos se foram, os pardais pipilavam e abriam o dia. Um montão deles era um coral. Eu não fiquei para trás, abri também o dia com as orelhas e da minha cama vi um dia diferente com nuvens espessas e paradas.

Os primeiros raios de ressaca surgindo com uma preguiça própria do céu. Olhos começaram a se abrir, mãos começaram a lavar os rostos. Os primeiros movimentos saem na rua, algumas portas se acordam e para a rua. Os pardais se espalham em vôos diferentes e buscam na variedade do cardápio o dia. Saem assim como o homem para a vida. Mas, eu fico coberto com o lençol e os  meus olhos estão pesados. Um friozinho está nos cantos do meu quarto, menino sapeca, sorrateiro.

LIMA, Ronaldo Pereira et all. Ritmo Vital: contos, poesias e crônicas. São Paulo, Edições AG, 2007.
Leia Mais ►

A menina que passa


Lá vai a menina que passa
E os meus olhos que pregam uma peça em frente da praça
Lá vai todo o encanto
Que é livre quando canto ao meu amor
E todos olham na praça
Que eu, passo a passo, vou com pressa.
Lá vão os meus pensamentos
Todo mágico, todo humano
Que foge e se abafa de tanto lamento

Lá vai o meu sorriso com o vento
Com cara de bento
E uma angústia por dentro
Lá vai, lá vai e as minhas lágrimas
Não vão, e você menina, lá vai.

Lá vou eu,
Com a menina que passa,
As mãos que passam e os pensamentos que montam uma peça
No meio da praça.
Não me peça menina que passa, a minha face
E todos te olham e me olham.
Mas entendam: ela é a menina que passa com muita pressa pela praça


(LIMA, Ronaldo Pereira de et all. O lugar da poesia e da prosa: Antologia, pp. 22-23. Rio de Janeiro: Taba Cultural, 2008).
Leia Mais ►

25 de jul. de 2008

Céu plúmbeo


O céu estava plúmbeo. No outro lado do rio, uma nova croa apareceu; entristecendo os corações dos ribeirinhos. Uma canoa passou melancólica e solitária.

Desci a rampa do porto das lanchas. Dentro de uma delas, olhei no visor do celular. Estava atrasada cinco minutos. Foi dado partida no motor. A lancha saiu de ré, auxiliada por um caibro roliço.
Diante de mim, vestido à Caruaru, um jovem de uns vinte e cinco anos tentava nos esconder a face e os olhos sob a aba do boné branco. Era como se ele estivesse nos escondendo algo, receando que a gente desconfiasse ou descobrisse.

A brisa suave e fria batia nossas faces e as águas, as poucas e cansadas águas do pobre Chico receberam as primeiras gotas do céu. O vento, malinando sobre a face das águas, formavam pequenas marés. A lancha se balançou e uma senhora, no fundo, estava aflita. Próximo a ponte, apesar da distância, notávamos a imensa ilha com currais que servem para pequenas criações de gado bovino. Ilha esta que antes não existia, mas que agora faz parte da vida dos ribeirinhos. Os assoreamentos surgem como um câncer.

E a lancha, sem saber, transportava a tristeza dos meus olhos para o outro lado do rio, onde iríamos parar num outro porto que nos receberia com um bueiro de esgoto.
Leia Mais ►