6 de ago. de 2017

O relógio


O relógio, suspenso na parede, era fiel nas suas longas e largas horasão. De ponteiros abertos, me fazia lembrar os cristãos quando oram ou rezam.
Sem saber, media as minhas lembranças que iam surgindo do esquecimento. Pudesse está na parede, na estante ou em qualquer lugar, lá estava eu e ele e algum pensamento perdido, me deixando taciturno e nauseabundo.
Não quis ser isso, nem estar com isso. Preferi ouvir da janela o ciciar da cigarra enquanto o céu azul recaia sobre o meu rosto. Ela dizia, não só a mim, mas a todos que estavam por perto que o verão se aproximava. Só que isso lhe custava a própria vida, ou seja, estaria pocada em alguma parte da estrada no outro dia. Fui ate à calçada e tive que abaixar os olhos, evitando os feixes luminosos do sol. Eles me fizeram lembrar de O Quinze e de Vidas Secas.
O relógio não me saía da cabeça e as lembranças faziam morada em mim. Vieram soltas, uma a uma. Boas ou ruins, eram coloridas, cheias de vida. Ainda na porta, vejo o vento farfalhar nas árvores e sacudir a poeira de um lado para o outro.
Quando os levantei, me dei conta que uma vassoura varria para debaixo de uma acácia mimosa a minha vida feito paparazzi. A princípio, fiquei sem graça; mas logo em seguida eu a encarei deixando bem claro que eu não tava nem aí para a peçonha dela.
Voltei para dentro de casa e o relógio estava do mesmo jeito que eu o deixei. Talvez a vida religiosa estivesse me perseguindo por algum motivo que desconhecia, querendo me enclausurar em um de seus templos. Parei diante dele, retirei-o da parede e o guardei. Não queria alguém me dizendo ou fazendo lembrar que eu deveria orar ou rezar. Precisava estar comigo, unicamente comigo; sem intrusos.
Inquieto, sem saber o que fazer; fiquei sentado no sofá hirto. Mas os ponteiro do relógio não me saiam da cabeça. E eu fiquei sem entender porque isso estava acontecendo. Seria o excesso de pensamentos e lembranças que me atormentavam? Fiquei ansioso para ouvir os tique-taque, mas consegui pela primeira vez mantê-los a distância.
Foi a campainha que me resgatou da imersão, me levando para outro mundo quando me vi diante dos olhos castanhos escuros de Keinha e das suas poucas sardas. Foram os lábios dela que me trouxeram para a superfície das coisas.

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