16 de set. de 2009

O vendedor de cocadas

Deparei-me com o vendedor de cocadas outro dia desses, quando andava tranquilamente pelas ruas daquela cidadezinha. Ele tinha aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura, olhos esbugalhados, vestido à Caruaru, meio bojudo, sorriso largo, calçado com chinelo de dedo. Ele empurrava um carrinho de mão, dizendo: “Oi a cocada!”. Seu vozeirão chamava a atenção de quem por perto passava.

Lembrei-me dele nos arrastões, da enorme bandeira que carregava estampando o número do candidato, dos dias de embriaguez, da euforia e cansaço dos comícios, das piadas, picuinhas tão comuns nas pequenas cidades que para nada servem.

Lembrei-me, também, do dia cinco de outubro do ano passado. Neste dia, quando o resultado de boca de urna saiu, uma turba de pernas, risos, lágrimas, abraços, invadiram a avenida onde se localizava o maior colégio eleitoral daquela cidade. Alguém filmava aquele calor, aquela euforia. O vendedor de cocadas se aproximou do cinegrafista amador e disse: “Minha cidade agora saiu do buraco. Pode filmar. Filme!”. E saiu saltitante.

Diante dessa lembrança, pensei: “Passou a politicanagem. Ficaram os ressentimentos, as mágoas, as brigas. Sei de uma verdade: governo vai, governo vem. Permanecem as pessoas, os eleitores, as intrigas, a corrupção, a irresponsabilidade. E a vida do vendedor de cocadas e de tantos outros permanecem a mesma: sem esperança, saúde, educação, lazer, trabalho e moradia”.

Ele continuou a labutar sob o sol seu pão e eu segui meu rumo, na ruma das incertezas.
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25 de ago. de 2009

Abandono e rejeição


Aos oito anos de idade Carla fora abandonada pela mãe, ficando na companhia de um pai epilético, alvoroçado e cachaceiro; apesar de trabalhador, além de uma irmã de quatro anos. A mãe era desses tipos de mulheres que entregou o corpo e a alma para as drogas, a prostituição, ao roubo. E era, também, dada aos bares.

Para Carla lhe sobraram apenas os afazeres de casa: cuidar da irmã caçula, cozinhar, preocupar-se com o pai, costurar e quando lhe sobrava tempo, ensopava a face com lágrimas miúdas. No seu peito juvenil se alojava a melancolia, o desespero.

Cheia de angústia, de dor; saiu outro dia de casa com um único pensamento: morrer. Esta foi a escolha que fizera para se livrar do peso que estava sobre sua vida. Na ausência do pai, pegou os comprimidos dele que combate a epilepsia e foi à escola. Estava pronta para tomá-los e dar fim a sua vida, mas a professora percebeu algo errado e interveio, tomando dela os comprimidos, abraçando-a. Carla apenas soluçava no ombro da professora.

Após dois anos, cinicamente a mãe retornou para casa e, o pai, covardemente a aceita e Carla; sentindo no peito as fisgadas da rejeição e abandono pede para o pai escolher entre ela e aquela mulher que se diz ser sua mãe. Ela perde a questão. Apela para a casa da avó que, por ruindade, não quer mais um fardo para sua vida. Sua avó é uma mulher passiva e lhe aconselha a aceitar a mãe. Em prantos, desabafando com a tia, escolhe como melhor solução a morte.

Outro dia fora à casa da avó para almoçar, pois, não queria partilhar àquela hora com o pai; muito menos com a mãe. A avó a recebeu nestes termos: “Já almocei e não tem mais comida. Por que você não volta para casa e come lá?”

Sem apoio moral da avó; saiu pelas ruas em um pranto silencioso e amargo.
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24 de nov. de 2008

Farinha com água


Meio-dia. O mormaço entra pela porta escancarada, ficando retido nos cantos da casa. Olhos pequenos e pretos brilham de tristeza, desfalecidos. A mãe os olha com um nó na alma, impaciente. O marido vai para a saleta.

Os filhos sentados em uma mesa que fora do vizinho, com quatro cadeiras descadeiradas; esperam silenciosamente pela mãe. O silêncio negro da fome põe no rosto as formas geométricas da tristeza, do desalento.

Ela se afasta. Pega um bule, água na torneira, botijão prestes a acabar e leva-o ao fogo. À água ferve, borbulha. Ela tirou o bule do fogo e saiu colocando em cada prato (Nem tempero havia). O vapor subia prendendo aquela família no mormaço da dor, do desespero.

Em seguida ela, a mãe, pegou o resto de farinha azeda e dividiu em partes iguais. Uma xícara para cada filho. Os meninos mexiam a colher, tristonhos sem querer comerem. Mas uma força maior estava dentro deles, forte, robusta: A FOME.

Depois ela se ajuntou ao marido e a FOME.
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19 de set. de 2008

O segredo escondido na prateleira


— Por favor, vá até a prateleira e me traga alguns fragmentos. Se por acaso você não os encontrar, procurai-os nos cantos da casa. E não demore. Obrigado!
 
No fundo escuro da prateleira uma criança chorava e ninguém ouvia seu pranto.
— Por que você está chorando?


— Porque estou com fome. Ninguém saciou minha fome.

Também chorei com ela porque estava com fome. E nós chorávamos e ninguém nos ouvia. Estávamos na parte mais escura da prateleira, onde costuma ficar a traça.


Então peguei linha, agulha e o cesto. Peguei algumas páginas e fiz pão, convidei-o para sentarmos em cadeiras de folhas. Começamos a comer, comer, comer...

 
Meus cadernos, 1998.
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