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Mostrando postagens com o rótulo Crônicas

A de sessenta

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Eram duas senhoras. Uma aparentava sessenta; a outro, oitenta e cinco. Elas estavam a caminho do sanitário. Uma tinha pressa, a outra caminhava devagar. Pelos trajes, eram de posses. Ao se aproximarem do sanitário, a de sessenta olhou para a outra raivosa e lhe disse: “Vou jogar você no lixo, certo!”, adiantando os passos. Nesse instante, uma bela jovem passava. Ao ouvir aquilo, voltou-se para a de sessenta e retrucou, sorridente: “Mulher, não faça isso não!”. A de sessenta respondeu: “Quer ela pra você?”. A jovem, sem pestanejar, replicou-lhe: “Quero!”. Pega de surpresa, a de sessenta observava raivosa para a jovem.

Céu de caibros

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O rádio toca. A s pessoas conversam distraidamente. Uma lagartixa tomou para si a parede e se confundiu com ela, hipnotiz ando um mosquito. Lá fora os carros passam com estupidez. É Domingo. A cozinheira está pondo o jantar. Todos se reúnem em torno d a mesa. Valores góticos e contemporâneos se colid e m, seguidos de ofensas. Do lado do pote uma formiga bebe água. O nariz do gato é róseo. E m meio à confusão, ele fica grilado em nós . Sem causa, el a s brigam, irritam-se. As formigas se cumprimentam. A aranha lança sua rede. Pescará o quê? Um mosquito, uma mosca perdida na noite. N ão sei. Sei que a rede posta entre um caibro e uma ripa pesca  os desencontros que saia m de cada língua. Um barulho freia os ânimos. O s olhos diminuíram de raiva. Todos foram à porta. Era uma carreata politica descendo pela avenida. Volta ram. F ica ram soltos na sala. Em seguida, cada qual saiu aos seus hábitos. Mônica foi para a cozinha. Papai foi assistir ao jornal. E u ligu

Pés e pneus

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A brisa. A árvore. Os pardais. Pés e pneus chegam. Esperam de pé e de pneu. Vozes se cruzam. Gargalhadas. Murmúrio. A sirene toca. O portão se abre. As bolsas saem. Crianças são tomadas pelas mãos. Crianças riem. Outras não. Adultos riem. Outros não. A briga. A brisa.

Keinha e os bichos

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Lilu Sabe, lá em casa a gente cria duas gatas e um cãozinho como se fosse gente. As gatas se chamam Kika e Tina e o cãozinho, Lilu. Eles estão sempre por perto. Na verdade, quem cuida deles é Keinha. Ela os conhece muito bem. Tininha, por exemplo, é ranzinza e ciumenta. Kika é carente e dengosa. Lilu adora pão com queijo, mas usa corticoide. Está sempre com eles no colo, mas não esconde que Tina é seu xodó. Keinha não se importa de ficar com a roupa cheia de pelos, nem a pele. Sempre conversa com eles. São seus serumaninhos . Teve um dia que ela estava com Tina no colo, apertando-a com afeto. Lilu não gostou daquilo, aí, saltou no colo dela. Estava disposto para disputar o quinhão de amor que lhe pertencia, enchendo-a de lambidas. Tina não gostou dessa ideia. Ronronou para ele. Lilu rosnou. Para acabar com a arenga, Keinha lhes disse: — Parem com isso. Vocês são irmãozinhos. E irmãozinhos não brigam, tentando reaproximá-los. Tina não quis nem saber. Saltou do braço do sof

O primeiro gole

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“ Por que, meu Deus, eu tenho que sofrer tanto assim nessa vida? Fui um bom filho. Sempre cumpri com os afazeres que o meu pai mandava e minha mãe. Por que hoje passo por tanto aperto? Sou um homem já idoso. O cansaço tá comigo e não me larga. Não tenho prazer nenhum na vida. Será que tô pagando pelos meus pecados, sofrendo e gastando o resto dos meus dias num barquinho; pegando uma bobagem aqui outro ali, sol, chuva, chuva, sol pra vê se eu arrumo um bocado e uns trocados? Não tenho nenhuma aposentadura. Se não fosse a ajuda do Governo e dos meus filhos que faz um bico aqui outro ali o que seria de mim? O que ganhei nesta vida? Só doença. Só fiz trabalhar feito um condenado. Pra quê? Não sei mais olhar pra os meus filhos. Nunca dei nada a eles, além de sofrimento e apertos. A minha mulher anda me rejeitando. Só anda com a cara feia. Quando eu vou querer um negocinho com ela, ela me dá às costas. Será que ela tá me traindo?”.   Esses conflitos perturbavam Artur .

Foi só um olhar

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Tudo se iniciou no Bar da Galega. Cátia e Frederico escutavam sertanejo por lá. Riam, beijavam-se e bebiam. Sandro entrou, observou as pessoas, cumprimentou alguns conhecidos e olhou de soslaio para ela. Frederico não gostou do modo como eles se olharam. Amarrou a cara na mesa e bebia com ímpeto. Passados alguns minutos, ele chamou Cátia de safada, vagabunda e deu um tapa na face dela. Sandro, sem saber os motivos, foi desapartar a briga. Raivoso, Frederico o empurrou, acusando-o de f l ertar com a mulher dele. Sandro perguntou se ele estava louco, discutiram e os fregueses do bar desapartaram eles. Nisso, Cátia saiu em lágrimas. Inconformado, Frederico foi atrás dela, dizendo: — Prá onde você vai, sua cachorra. Quando chegar em casa, você me paga. Vagabunda. Só vive dando ousadia a todo mundo que ver pela frente. De hoje não passa. Você me paga. Ele conseguiu alcançá-la. Pegou-a pelos cabelos, deu-lhe umas bofetadas e saiu rua a cima. Tinha gente que fingia não ver, ou

Última dor da existência

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Ela estava sentada no batente da porta. Face voltada para a calçada e entre os dedos o cigarro. O cigarro, quando posto entre os lábios, estremecia. Nela havia solidão e o seu mundo estava desarranjado. A mente muitas coisas fazia, participava no cubículo do seu ser. Passavam-se as horas. Passavam pessoas. Só não passava aquela angústia, aquela dor, a última que alguém pode sentir nesta vida. Só o cricrilar fazia-se presente no fechar e abrir dos dias.

A minha gata

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Kika A minha gata vive atrás de mim, toda dengosa. Mas o dengo dela tem explicação: é a fome. A minha outra gata afirma que não é nada disso, mas amor. Acontece que a minha gata faminta quando está com o bucho cheio, me trai. Imagine: ser traído por um bucho cheio! E essa traição arranca risos da outra gata.

O Rio de assoreamentos

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Muitos foram os textos publicados. Alguns técnicos outros não. Há, também, os textos inéditos, baços nos olhos e na língua do povo simples que vive do Velho Chico e dele depende.   Não serei mais um a escrever um texto contendo dados de uma instituição ou baseando-se em algum estudioso. Não há muita necessidade de conhecimento científico para compreender que o Chico, com a sua pouca água, estar se tornando um  miserável  nacional ; agravando mais ainda a vida dos ribeirinhos.   Este texto possui a melancolia, o pesar e a dor de todos os cidadãos ribeirinhos e aqueles que possuem consciência ambiental. No entanto, darei ênfase no trajeto  da cidade de São Brás até a divisa do estado de Alagoas com Sergipe por meio da ponte rodoferroviária. Nesse trecho, nota-se com bastante amargura que a Transposição sem revitalização é uma insanidade política e grosseira. Um feito megalomaníaco, típico de pessoas sem escrúpulo e que fazem de tudo para saciar os seus umbigos.   Todas às

Mundo Circular

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Carlito os viu passar. Deixou o balcão, as garrafas falantes nas mesas e acenou com a mão para eles. Queria ser o primeiro a ter certeza dos boatos circulares das praças e bares. Ao se aproximar dos conhecidos, perguntou-lhes: — Seu Artur, é verdade que ontem à noite, quando vocês pescavam, um casal de Nego d'água atacou vocês dois? Tá uma confusão danada nas ruas. O povo tá com tanto medo que nem banho que tomar no [1] Rio. — Olhe seu Carlito, não sei disso não. O povo conversa muito. A gente não foi atacado por nenhuma criatura das águas. O que aconteceu foi isso: a gente saiu da croa para pescar. De repente, um toró caiu sobre a gente, acompanhado de uma ventania danada. Como o barquinho tava precisando de reforma, não aguentou com os sopapos do vento. Ele se partiu ao meio e a gente quase morreu. Só foi isso. Não teve Nego d'água nenhum. Quando Carlito resolveu lhe fazer outra pergunta, o celular de Artur o interrompeu. Ao atender o telefone, ele ouvia o desespe

Prefiro garotas off-line

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O sorriso era solto e os lábios carnudos. Isso  realçava a beleza exótica dela. Apesar de divorciada, seus olhos não eram tristes, nem lamurientos. Transpareceu alívio, pois, seu ex era muito ciumento e não queria ser mais uma na lista da Proteção Preventiva .    A trepidez da lancha não impedia o nosso diálogo. Ela levantou-se do assento de madeira, pediu para o condutor da lancha parar no primeiro ponto de desembarque, sentou-se e disse: — Não posso passar por aqui sem ir à casa da minha amiga. A gente se conhece desde a escola e somos boas amigas. — Faz bem, disse eu. Preservar os verdadeiros amigos é coisa boa porque eles são poucos e raros. Boa sorte em sua amizade. Ela me agradeceu, pegou endereço do Face , deixou-me aquele sorriso largo e se foi. A lancha seguiu seu destino e a trepidez dela não impedia os meus pensamentos, nem a doce lembrança que ela deixou naquela manhã. Se não a conhecesse pessoalmente jamais me deliciaria naqueles lábios, nas maçãs q

A pescaria

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— Artur, vamos tentar hoje de novo? — Para quê? Para gastar o nosso tempo! Você não tá vendo que esse Rio não dá mais nada não? Quando a gente sai, só pega uns tilapes que não dá nem prá um frito! Por onde se pende só se vê mato e areia. Parece que o Rio tá morrendo e ninguém liga. É croa daqui é croa dali. O que foi que a gente pegou ontem, hem? Me diga vá! Três tilapes que não deu cinco quilos. Alberto silenciou por alguns instantes, compreendendo com tristeza as aflições do amigo. Mas insistiu, dizendo: — Amanhã é dia de feira. Eu sei que o que a gente pegou foi muito pouco, mas pode ser que a gente dê sorte hoje à noite. Bora. A gente nunca sabe e amanhã é outro dia! — Vou não perder meu tempo, como ontem. Vá você! — Bom! Tô indo. Se você mudar de ideia, eu tarei na casa de mamãe. Até mais! — Até e boa sorte! Artur permaneceu debruçado sobre o cais e pensava: Por que meu Deus, eu tenho que sofrer tanto assim nessa vida? Fui um bom filho. Sempre cump

As lavadeiras

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Eu estava no terreiro brincando com Valente. Vovó apareceu no batente da porta e me chamou. Fui ao encontro dela e ele me acompanhou. Vovó pôs a mão dentro do bolso direito do vestido, tirou um tostão e me pediu para comprar sabão branco e sabão da terra. Eu fiquei curioso para saber qual era a diferença entre um e outro, mas quando retornei da casa de dona Firmina, entreguei os sabões, ganhei o troco; me entreti com Valente, deixando a aquela curiosidade de lado. Mas tarde, alguém apareceu na porta da frente chamando por vovó. Ela acenou para mim e pediu que eu observasse quem era. Depois de ter prestado atenção, de lá mesmo disse que era Marli, a lavadeira. Vovó pediu que ela entrasse, indo pra cozinha. Eu acompanhei ela. As suas mãos eram engiadas e a maioria das unhas tinha caído. Conversaram bastante tempo. Depois foi embora. Cheguei para vovó e perguntei para ela: — Vó, por que as mãos e as unhas de Marli são daquele jeito. Tive pena dela! — Porque ela lava pra ganh

O teclado

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Estou diante do monitor. Olho para o teclado e vejo nele um monte de símbolos e me faltam palavras. A impressora espera alguma folha, “doida” para imprimir. Procuro palavras no meio de tantas, e não as acho. Se for buscá-las em dicionário, não servirão para um idílio ou dor. A minha carne   cansou -se de tudo, até de mim. Vozes vibram no ar. Palavras se entrelaçam no abraço da comunicação. Algo pousou em mim. O que é, não sei. O mundo gira em torno deste teclado. O mundo parado, inerte, que não quer morrer. Apenas está num estado de movimento, mexendo nas teclas sem saber para onde ir.   Cadernos, 08 junho 2001

A alma e as ruas

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Ontem o meu coração estava nas minhas tripas e uma sensação ruim me acompanhou. As luzes dos postes não me traziam nenhuma novidade. Em mim, várias faces que não me definia. Vi-me perdido nas ruas e o tédio me afagava. Estava só, num estado de graça e angústia.  No bar, o copo de cerveja na minha frente, gelado, suando, não me desmanchava. O queixo tremeu, a pele tornou-se diferente. As vozes iam, viam e não me interessavam. Levantei-me e sem rumo e sem leme fui andando no meio das intempéries, levado pelas havaianas. Senti uma vontade de nascer de novo. Perguntava aos céus o que eu estava fazendo ali. Como resposta nenhuma veio, senti-me solto, jogado no mundo como se estivesse pagando uma pena. Dentro de mim vozes entravam de formas diferentes, formavam fatos e atos. Para quem ou para o quê, não sabia. Sei que aquele dia não me foi diferente, pois sentia a sequência de anteriores que se repetiam com dramas e sustos repentinos. Ia, ia sem perder a direção.  As ruas

Historinha

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O menino pedia para a mãe por uma historinha.  Impaciente, olhando de um lado para o outro como se um mico pagasse, disse a alguém que a acompanhava: — Todo dia é isso: este menino inventa alguma coisa. Agora quer uma historinha. (Meneando a cabeça). A reclamação dela não conseguiu vencer a curiosidade dele. Dirigiu-se a um revisteiro e decepcionou-se, pois, as historinhas que ele queria não estavam ali. A mãe, aborrecida, pegou-lhe pelo braço, dirigiu-se ao caixa de atendimento, pagou a conta e se foi. E aquele pequeno leitor será  interrompido por quem historinhas deveria lhe dar. 

O pescado

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Estávamos na lancha. Ao meu lado, Mário pescava. Eu topei em seu ombro direito. Então, ele abriu os olhos esbugalhados para mim. Perguntei-lhe: —   Quanto custa o quilo do peixe?   Sem compreender, respondeu: —   Qual? A tilápia, o tambaqui, o piau...? Norma, que diante de mim se encontrava, caiu; mas de gargalhada. Eu ri também junto com ela. Mário ficou meio constrangido, percebeu o gracejo e disse: —   Você e suas frases tiradas do baú! Ainda rindo, retomei o diálogo, dizendo-lhe: — Se fosse do baú, ela não estaria impregnada em nosso corpo.   Mário, quando o cesto estiver cheio, você me diz quanto custa o pescado da sua pescaria. E atravessávamos o rio na trepidez da lancha e das gargalhadas.

Com os covos na mão

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Marulhava as águas sobre as pedras. Nelas, um hóspede inesperado ancorou o barco. Espreitou de um lado, do outro para ter certeza que estava a sós. Ele e os covos, ele e o marulhar das águas numa noite densa e fria. As pupilas se dilataram, o coração pulsou com mais força, a pressa apareceu e na ânsia, via tudo a sua volta com desconfiança. Dentro da madruga só os olhos brilhavam atentos, espreitando e estreitando os intentos que emergiam dos circuitos elétricos vindos do cérebro. Avistou de longe um tronco de uma árvore rio abaixo, assustou-se pensando que era uma canoa. O susto passou, mas ele ficou com a desconfiança no peito e os covos na mão.

Eu não fiz com o dedo

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— Amiga, não sei o que fazer. Tô grávida, meus pais não sabem e tô desesperada. Me der uma luz! — Não sei como dar luz a uma grávida. A única coisa que sei é que ela brilhará daqui a nove meses. (risos) — Deixe de brincadeira. Tô falando sério! Não sei o que fazer. — Já falou para ele? — Ainda não! Tô com medo dele me rejeitar e eu ser mais uma mãe solteira. — Amiga, se ligue! Essa criança não é só sua. Se ele não quiser assumir, você vai e denuncia na Justiça e Pronto. Vai deixar de graça, é? — Não amiga! Tôu tão confusa e com medo. Os homens são estranhos. Diz que gosta, quer ficar com a gente e quando acontece isso, eles fogem como diabo da cruz. Ainda dizem que a gente é complicada. — Amiga, deixe de bobagem. Você fez com o dedo, por acaso? — Não! — Então! Tente conversar com ele. Ele não diz que gosta de você. Que sempre estar com você em tudo que é festa? — É! — Então! Vou telefonar para ele agora. — Não sei. — Ligo ou não li

Galrão

Eram sete horas da manhã. Desci a rampa do porto, entrei na lancha e sentei. De onde estava, via o céu nublado e nele um arco-íris enfeitando a manhã. Enquanto folheava a Gramática, uma mulher conversava o tempo todo como se tivesse necessidade de fazer aquilo durante toda a viagem. Com o cigarro entre os dedos e os lábios, chamava a minha atenção. Olhei algumas vezes para ela, para a pose que só os fumantes têm, dei uns sorrisos contidos e retornei para a Gramática, deliciando-me com os verbos de ligação. E porali fiquei alternando de um estado para outro, sem me incomodar com a trepidez da lancha, nem com a tagarelice dela.